21 Julho 2020
Mike Davis (Fontana, 1946), sociólogo, historiador, autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais estão “Planeta Favela”. Vive em San Diego, Califórnia, Estados Unidos, a pouco mais de 100 km da fronteira com Tijuana, México.
Há três meses, disponibilizou na internet um livro sobre a gripe aviária, que havia escrito 15 anos atrás, e que tinha distribuído todos os exemplares. Acredita que, de forma inconsciente, não quis conservar em sua biblioteca essa lembrança do perigo iminente. Contudo, mais uma vez, o monstro bateu à porta e, desta vez, ganhou dimensões apocalípticas.
Mike Davis passou este tempo fechado em sua garagem, revisando aquele trabalho e escrevendo os novos capítulos que fazem parte de “Llega el monstruo”, livro que já pode ser encontrado nas livrarias espanholas, publicado por Capitán Swing. Sua leitura nos confronta com a irracionalidade da indústria de alimentos global, as políticas criminosas das multinacionais e a ameaça de novas pragas provocadas pelo capitalismo.
Davis responde esta entrevista por escrito, em meados de julho, quando os Estados Unidos ainda estão no centro da tormenta.
A entrevista é de Josefina L. Martínez, publicada por Ctxt, 19-07-2020. A tradução é do Cepat.
Muito se falou sobre a origem do coronavírus. Como se relaciona com a agricultura industrial e o papel das multinacionais? São estas as novas pragas do capitalismo?
Sabemos que o vírus pandêmico, SARS-CoV-2, originou-se nos morcegos, assim como os SARS originais de 1992-93. Um quarto de todos os mamíferos são morcegos – cerca de 1.500 espécies – e abrigam uma incrível variedade de vírus, incluindo centenas de coronavírus, que tem o potencial de saltar para os seres humanos, seja diretamente ou através de um animal selvagem que atua como intermediário. Não se conhece a cadeia de transmissão do vírus atual e, de fato, pode ser que nunca se conheça, mas a constante expansão de cultivos e granjas em áreas silvestres da China é provavelmente um fator central, junto com a tradição cultural de consumir morcegos e animais exóticos.
No caso de novas gripes - que continuam representando um risco iminente -, o crescimento exponencial da produção industrial de porcos e frangos, no sudoeste da Ásia e em outros lugares, ampliou enormemente esta ameaça pandêmica. Os porcos, que podem ser hóspedes de uma dupla infecção de cepas de gripe aviária e humana, são reatores biológicos centrais, já que os segmentos do genoma de dois vírus podem, às vezes, se recombinar para criar híbridos monstruosos.
As indústrias avícolas, por sua vez, atuam como aceleradores virais para a propagação destas novas cepas. Em nível mundial, o desmatamento é o golpe que rompe os muros entre a natureza selvagem e suas enormes reservas de vírus, por um lado, e as cidades humanas superpopulosas, por outro.
Um exemplo citado em meu livro é o caso da região costeira da África ocidental, a zona de mais rápida urbanização do planeta. Tradicionalmente, as aldeias e cidades dependiam do peixe como a principal fonte de proteínas. Mas, a partir dos anos 1980, as frotas industriais da Europa e Japão extraíram aproximadamente metade dos peixes do Golfo de Guiné. Os pescadores locais perderam seus meios de vida e os preços dos peixes dispararam nos mercados urbanos.
Simultaneamente, as multinacionais madeireiras estavam abrindo passagem com motosserras nas matas tropicais do Congo, Gabão e Camarões. Para manter baixos os custos da mão de obra, contrataram caçadores para matar animais selvagens, incluindo primatas, para alimentar as quadrilhas. Esta “carne silvestre” logo encontrou uma enorme demanda nas cidades ávidas por proteínas, especialmente entre as populações dos bairros pobres, que viviam em condições sanitárias terríveis.
Esta cadeia causal – a espoliação dos recursos pesqueiros sustentáveis, o corte de matas que rompeu as barreiras naturais entre as populações humanas e os vírus selvagens, o aumento da caça de carne de animais silvestres em grande escala para abastecer os mercados urbanos e o crescimento exponencial dos bairros pobres urbanos – foi a fórmula mestre para o surgimento tanto do HIV, como do Ebola.
Quinze anos atrás, você escreveu “O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária”. Desde aquele momento, muitos estudos alertaram sobre a possibilidade de uma pandemia. Por que chegamos a este ponto quase sem nenhuma prevenção e sem o desenvolvimento da pesquisa científica adequada para combater este tipo de vírus?
Na realidade, nos últimos 25 anos, houve uma enorme quantidade de pesquisas e preparação para uma pandemia. Em certo sentido, tudo foi vaticinado, mas alguns países se negaram a prestar atenção às advertências ou, como os Estados Unidos sob Trump, desmantelaram deliberadamente estruturas cruciais para o alerta precoce e o controle.
Além disso, o Reino Unido, os Estados Unidos e alguns países europeus haviam cortado drasticamente o gasto em saúde pública, seja por razões ideológicas ou pelas medidas de austeridade posteriores a 2008. Nos Estados Unidos, por exemplo, enfrentamos o surto em fins de janeiro com 60.000 profissionais da saúde a menos do que haviam nas folhas de pagamento dos governos locais e do Estado, em 2007.
Enquanto isso, a grande indústria farmacêutica [Big Pharma] continuou dificultando o desenvolvimento de antivirais que são necessários com urgência, antibióticos de nova geração e vacinas genéricas. No outono passado, o próprio Conselho de Assessores Econômicos de Trump o advertiu de que não era possível contar com as grandes empresas farmacêuticas em uma crise pandêmica, já que em geral haviam abandonado o desenvolvimento de remédios para doenças infecciosas, a menos que o governo federal interviesse com milhares de milhões de dólares em subsídios.
Por outro lado, as empresas de biotecnologia menores, que estavam sendo precursoras de novos medicamentos e vacinas, viram-se privadas do capital necessário para levar suas descobertas às etapas finais de teste e produção. Após o surgimento da SARS, em 2003, por exemplo, um consórcio de laboratórios do Texas havia desenvolvido uma possível vacina contra o coronavírus que ninguém se dispôs a financiar. Caso tivesse sido desenvolvida, dada a coincidência de 80% entre os genomas da SARS-1 e a SARS-2, poderia ter sido uma base excelente para a produção acelerada de uma vacina contra a covid-19.
O mais importante, de qualquer modo, é que a maioria dos países da Ásia oriental, tanto os autocráticos como os democráticos, conseguiram conter a pandemia até agora graças a planos de resposta bem preparados (um legado das anteriores crises da SARS e da gripe aviária), uma ampla aceitação da liderança científica, a imediata aceleração da produção de máscaras e respiradores e, um fator central que em sua maior parte foi ignorado, a capacidade de mobilizar grandes exércitos de trabalhadores e voluntários para responder no nível da base.
Apesar de sua condição de nação em vias de desenvolvimento e da escassez de médicos, o êxito do Vietnã foi notável e provavelmente seja o resultado da combinação de laboratórios de categoria mundial (os Institutos Pasteur, em Hanói e na cidade de Ho Chi Minh) com uma rede nacional de trabalhadores da saúde públicos, em escala de aldeia e bairro.
O calcanhar de Aquiles do planejamento prévio em muitos países ricos foi se apoiar exclusivamente nos profissionais da saúde, quando uma educação pública universal acerca das ameaças de doenças e a organização de uma reserva de voluntários capacitados são quase tão importantes para combater as tormentas virais. Conforme a tragédia está nos obrigando a compreender, não vivemos em uma pandemia, mas em uma era de pandemias.
O discurso dos governos é que desta pandemia “saímos todos juntos”, mas a realidade é que o vírus, sim, entende de racismo e capitalismo. Como esta crise afeta os trabalhadores precários, latinos e afro-americanos?
Os diferentes países, é claro, diferem amplamente em relação ao acesso a uma atenção médica, os indicadores da desigualdade de renda e os legados estruturais da discriminação racial e étnica. Entre as nações de alta renda, os Estados Unidos são a que tem a pior pontuação nas três categorias. Mas mesmo em países com atenção médica universal e níveis de desigualdade muito menores, há populações vulneráveis que ficaram desprotegidas e, muitas vezes, invisíveis na crise atual.
As residências de idosos se tornaram necrotérios nos dois lados do Atlântico e são a origem de 40 a 50% das mortes de covid-19 em muitos países. Nos Estados Unidos, onde o número de vítimas deste tipo já supera os 50.000, estima-se que a metade são afro-americanos. Aqui é onde as vidas dos negros parecem importar menos.
Se os especialistas em saúde pública sabiam que estas instalações rapidamente se tornariam focos de infecção, por que os governos nacionais e locais não criaram imediatamente grupos de trabalho especiais para intervir? E por que as ONGs e os partidos políticos progressistas não fizeram disto uma demanda incisiva? As mesmas perguntas, é claro, deveríamos nos fazer sobre os cárceres, prisões e campos de refugiados. A atitude fundamentalmente passiva das autoridades, acredito, só pode ser caracterizada como descaso criminoso.
A crise também permitiu visibilizar a importância dos “trabalhadores essenciais” para o funcionamento da sociedade. E são os mais expostos ao contágio.
Aqueles que agora nós reconhecemos como “trabalhadores essenciais” diante da pandemia incluem desde pesquisadores científicos até zeladores e cuidadoras em domicílios. Além de todas as categorias do setor da saúde, milhões de pessoas que trabalham na agricultura e na indústria frigorífica, na venda e distribuição de alimentos, em serviços públicos como o transporte, a vigilância e a saúde, e na indústria logística (armazenamento e distribuição). Estes são justamente os setores que têm as maiores porcentagens de trabalhadores pertencentes a minorias com salários baixos, imigrantes recentes e empregados temporários.
Nos Estados Unidos, quase a metade destes trabalhadores são negros, latinos e asiáticos e, salvo que pertençam a um sindicato, é pouco provável que tenham um seguro médico adequado (ou que tenham algum). Muitos passam longos períodos sem receber tratamento por doenças que teriam sido atendidas de forma rotineira, se tivessem seguro médico e, portanto, sofrem doenças crônicas como a asma e a diabetes.
Seus trabalhos estão entre os mais perigosos, tendem a trabalhar jornadas mais longas e, no caso dos que possuem renda baixa, vivem nas piores condições de moradia. Há seis meses, enfrentam o maior grau de exposição à ameaça do coronavírus, geralmente sem equipamentos de proteção e sem o direito de reclamar contra as precárias condições de trabalho.
Estes trabalhadores foram completamente traídos pela Administração de Seguridade e Saúde Ocupacional (OSHA) – uma agência do Departamento de Trabalho dos Estados Unidos –, que se negou a implementar normas obrigatórias para proteger os trabalhadores e atender milhares de queixas apresentadas de forma oficial. Por isso, a indústria frigorífica no Meio-Oeste, onde a maioria dos trabalhadores pertence a minorias ou são novos imigrantes, foi tão devastada pela covid-19. E por isso os trabalhadores norte-americanos fizeram greve ou organizaram protestos furiosos em mais de 500 ocasiões, a partir de abril.
Neste contexto, que papel desempenham empresas como a Amazon?
O alvo de protestos com frequência foi a Amazon, a máxima especuladora com a pandemia, e que violou notoriamente os direitos dos trabalhadores. O patrimônio pessoal de Jeff Bezos aumentou em astronômicos 33 bilhões de dólares, entre março e abril, enquanto a empresa se tornou uma via fundamental para a entrega de alimentos e fornecimentos básicos para as famílias confinadas em seus lares. Ao mesmo tempo, apressou-se a ocupar de forma permanente os espaços vazios deixados pelo fechamento de tantos milhares de pequenos negócios varejistas (uma estimativa comum na imprensa internacional especializada é que um quarto das pequenas lojas afetadas na Europa e Estados Unidos nunca voltarão a abrir).
Os democratas, com exceção de Elizabeth Warren, não abordaram os problemas que o crescente monopólio da Amazon representa. Durante as duas guerras mundiais do século passado, impuseram-se com êxito impostos aos “lucros extraordinários” das principais empresas na indústria armamentista, mas os dirigentes democratas se negam a considerar uma regulamentação similar para a Amazon ou para as grandes empresas farmacêuticas. Até o fim do ano, a economia norte-americana se parecerá ainda mais com a sociedade capitalista pura e dura descrita por Fritz Lang, em seu famoso filme “Metrópolis”.
Em seu livro “Planeta Favela”, analisa esse fenômeno das gigantescas metrópoles, onde a superpopulação e a aglomeração são a normalidade. Pode haver direito à saúde nestas condições da geografia urbana capitalista?
Desde inícios do século XX, houve um debate essencial e recorrente sobre como controlar as epidemias em nível mundial. A posição estadunidense, apoiada pelos enormes recursos da Fundação Rockefeller, centrou-se em travar guerras contra doenças específicas, com recursos massivos centrados no desenvolvimento e na distribuição de vacinas. Estas cruzadas pelas vacinas tiveram grandes êxitos (varíola e poliomielite) e também grandes fracassos (malária e HIV). Esse enfoque baseado em intervenções técnicas específicas para cada doença salvou vidas, mas deixa em seu lugar as condições sociais que promovem as doenças.
A outra vertente no debate deu prioridade ao investimento em infraestruturas de atenção primária à saúde nas regiões e países mais pobres. Inspira-se nas ideias da “medicina social” propostas pelo grande patologista alemão Rudolf Virchow, nos anos 1880, e amplamente adotadas no século XX por partidos da esquerda, assim como por um amplo espectro de reformadores que desejavam reorientar a medicina para a prevenção de doenças, junto com reformas sociais radicais.
Durante grande parte do pós-guerra, a Organização Mundial da Saúde foi dominada pelos Estados Unidos e o paradigma Rockefeller, mas os defensores da medicina social obtiveram uma importante vitória em 1978, quando a OMS emitiu a “Declaração de Alma-Ata”, na qual se afirmava que o acesso a serviços sanitários de qualidade era um direito humano universal. Adotou-se um plano de campanha que destacava a importância da participação da comunidade e de um enfoque na base para conseguir “saúde para todos no ano 2000”. Contudo, a contrarrevolução neoliberal que seguiu à eleição de Margaret Thatcher e Ronald Reagan tornou esta declaração letra morta.
A covid-19 está revelando até que ponto há duas humanidades imunologicamente diferenciadas. Nas nações ricas, cerca de um quarto da população cai na categoria de alto risco em razão da idade e os problemas de saúde crônicos, muitas vezes, relacionados com a raça e a pobreza. Por outro lado, nos países com renda baixa e em muitos países com renda média, de metade a três quartos da população se encontra em situação de risco. O cofator mais importante é a diminuição da imunidade devido à desnutrição, as infecções gastrointestinais generalizadas e as doenças descontroladas e não tratadas como a malária e a tuberculose.
Atualmente, 1,5 bilhão de pessoas vive em favelas na África, sul da Ásia e América Latina, que são perfeitas incubadoras da doença. Sabemos que lá a pandemia está fora de controle, mas em grande medida permanece invisível nas atuais estatísticas fragmentadas. E se a Europa mostra certa disposição em compartilhar eventuais estoques de vacinas com os países pobres, a administração Trump demonstrou, recentemente, com a compra de todos os estoques mundiais do medicamento Remdesivir, que não tem a intenção de compartilhar nada. América first significa África em último lugar.
Nas últimas campanhas, a corrente progressista do Partido Democrata, em grande medida, ignorou estas questões da saúde e a pobreza em nível mundial. Também desapontou as expectativas de seus simpatizantes. Esta semana, anunciou-se que as negociações entre os setores de Biden e Sanders deram lugar a uma plataforma democrata que está muito abaixo do “Seguro médico universal”, a demanda central da campanha de Sanders, apesar de a pandemia e o colapso econômico demonstrarem um milhão de vezes sua urgente necessidade.
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“Não vivemos em uma pandemia, mas em uma era de pandemias”. Entrevista com Mike Davis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU